URBANISMO NATURAL: UMA FORMA DE SE (RE)CONSTRUIR AS CIDADES


30/09/2011
Giuliano Nacarato Moretti*
Disponibilidade de bens e serviços ambientais
A cada dia se subtrai uma parte de um bem ou serviço ambiental intangível ao nosso redor: às vezes uma fração do céu, outras da luz ou do calor natural. Foi-se a eventual contemplação do fim de tarde, mesmo aquela por entre os obeliscos da cidade. A luz da manhã também não parece ser a mesma, uma energia imprescindível para a re-ligação do ser com a sua essência. A brisa que não sopra mais devido às novas construções obstrutivas. O silêncio, tão necessário para a introspecção, para o reequilíbrio do indivíduo, é sequestrado pelo ensurdecedor ruído de freios, pneus, buzinas e motocicletas cujos pistões explodem entre as paredes de concreto, como que amplificadores do egocentrismo. Indo mais a fundo, porém, concluo que um dia, quando me estabeleci naquele lugar, alguém próximo também perdeu parte de seus ativos ambientais. E eu nem pedi permissão para me apossar desses preciosos bens. É o preço que se paga pelas comodidades e vantagens de se viver nas cidades, na luta por “um lugar ao sol”.
Qual o valor do amplo horizonte que se perde em função da aglomeração verticalizada de pessoas? Quanto vale a chuva que lava a atmosfera, mas hoje se compromete com a emissão de poluentes através das chaminés de estabelecimentos comerciais ou de serviços? Quem reconhece o valor do silêncio, um bem praticamente esquecido no meio urbano atual? Ou o serviço ambiental de percolação da água na terra que a purifica, perdido pela impermeabilização urbana que empobrece nossos inestimáveis freáticos? No mínimo, todas estas interferências valem a diferença entre uma vida saudável e uma vida estigmatizada por agentes urbanos que nos causam distúrbios psicofisiológicos. A disfunção do nosso “todo orgânico” passa a ser normal, contra todas as tentativas de equilíbrio entre o ser e o seu entorno.
Acostumei-me a indagar: quanto custa a pronta disponibilidade de um bem ou de um serviço ambiental? Um exercício que aconselho a todos. Culturalmente, ignoramos a importância dos ativos ambientais que podemos usufruir. Não me refiro em termos financeiros, pois, provavelmente, dinheiro nenhum compense estas perdas. Refiro-me, sim, aos custos qualitativos. Enfim, qual é o valor do bem-estar?
A conveniência das cidades
Saneamento básico, hospitais, acesso ao consumo, lazer, transporte, emprego, comércio e serviços gerais são algumas das motivações que nos conduzem às cidades, isto é, ao imediato atendimento das nossas necessidades. E esta pronta satisfação dos anseios, desde os tempos da Revolução Industrial, promove um êxodo contínuo do homem do campo, rumo às metrópoles, inchando-as. Das áreas rurais e um meio de vida singelo, porém não indigno, deslocam-se sonhos de uma vida fundamentada no que entendemos como progresso.
Impossível ver o mundo de hoje sem as cidades. Perdoem-me os ecomaníacos de plantão, que idealizam um retorno ao estilo primitivo. Aliás, fácil pensar assim, até que seja necessária uma internação numa UTI, a extração de um dente, a cura doméstica para uma infecção ou a comunicação imediata com um parente distante.
As cidades são o retrato fidedigno de nossa civilização e evolução, como que a materialização de nossas buscas, nossas conquistas, nossa construção de um mundo de idéias e perspectivas, exteriorizado em concreto, movimento, privado e público, serenidade para menos e ansiedade para mais, violência e paz, ricos e pobres, caos e cosmos. Contrastes em que alguns ganham, mas todos, inclusive os que ganham, também perdem. Embora a intensidade dos contrários, penso que a cidade há de ser, sim, um lugar de convívio inefável, de compartilhamento, de convivência, e não de competição predatória.
Um abismo entre o construído e o natural
Afora os grandes benefícios de se habitar uma cidade, vemos que as compensações ruins não são poucas. O distanciamento do ser humano do seu mundo natural certamente provoca nele disfunções orgânicas, devido à nociva e ininterrupta competição. Na cultura da competitividade urbana, não obstante haja lá algumas vantagens, o sujeito busca se estabelecer em meio à concorrência por todos os tipos de recursos, tão escassos quanto maior a densidade populacional. Estopim para a violência no sentido amplo, desrespeito, individualismo e, por conseguinte, inflama-se a ferida socioambiental.
A altíssima pressão urbana sobre recursos e serviços ambientais retroalimenta uma perda considerável de qualidade de vida. Demandas e disputas crescentes por espaços, materiais, água e energia, configuram um sistema de fluxos e transformações que esvaziam o ente natural e enriquecem o construído, a preços incalculáveis para o presente e ainda mais altos para o futuro.
Desconfio que a grande crise urbana se dá pelo afastamento do coletivo da sua base fundamental, provedora da vida e dos meios para sua prosperidade. É a obstinação pelo valor do construído e o lamentável distanciamento do valor do natural. Esta dicotomia gera uma tácita sensação de desligamento da existência, minando nossa paz social e ambiental. Valorizamos aquilo que nos exige esforço, como o progresso, mas subestimamos o consequente passivo abarcado pelo “mundo dado”, que retorna como um inimigo ferrenho das nossas próprias ambições. Talvez o árduo trabalho para recuperarmos, pelo menos em parte, a resiliência ambiental original, faça com que valorizemos um pouco mais o meio que nos circunda.
Urbanismo natural
Impossível voltar ao arcaico meio de vida. Mas podemos minimizar muito nossos impactos, sem abandonar o conveniente meio compartilhado de vida das metrópoles. Cidades exemplos são reprojetadas e outras construídas sob a égide do conhecimento amargado pelas civilizações. Isto é, aprendemos pelos erros, antes justificáveis pela idéia de crescimento e desenvolvimento a qualquer preço. Algo ótimo para o processo de retomada de consciência. Urbanistas das novas gerações estão mais bem preparados para corrigir nossos tropeços seculares. Utilizando-se da tecnologia, paradoxalmente conquistada pela exploração indiscriminada, será possível estabelecer as chamadas “construções sustentáveis” e as “ecocidades”, cujas idealizações não são mais utópicas.
Nas cidades, felizmente, proliferam-se ações ou possibilidades para a inclusão das variáveis socioambientais, como as certificações de edifícios e até de bairros inteiros, respeitando novos valores versados pela sustentabilidade. Eficiência energética, matrizes mais limpas, mercados produtores e consumidores locais, transporte coletivo inteligente, quilômetros de ciclovias, biomimetismo em processos produtivos e urbanos, limites efetivos para a poluição sonora, hídrica, atmosférica e do solo, sendo eles fiscalizados pela sociedade e pelo poder público. Isto é urbanismo natural.
Gestores públicos, arquitetos, engenheiros e urbanistas dispõem hoje de um arsenal tecnológico nas mãos. Lembrando sempre, é claro, que esta é a oportunidade para se destacar num mercado ascendente. Que se valorizem os espaços privados e compartilhados. Não se permitam que a luz seja encoberta, nem que o ciclo de vida das construções acabe com nossos recursos. Conforto acústico e térmico, ventilação e iluminação naturais, reaproveitamento das águas, vias permeáveis, redução do consumo, materiais ecoeficientes, preferência por serviços ao invés de bens. Possibilidades infinitas, cujos ativos ambientais serão prioridade nos projetos urbanísticos. A sociedade está de olho. Ao lado destes profissionais, também irá contribuir para este novo “mundo construído”, sempre alicerçado no imprescindível “mundo natural”.
*Mestre em Gestão Ambiental, Engenheiro Químico, Vice-Coordenador do Núcleo de Estudos Científicos em Sustentabilidade (NECS) da Preserva Ambiental Consultoria.
Publicado em 06/11/2010 em <http://necs.preservaambiental.com/urbanismo-natural/>

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